segunda-feira, 4 de agosto de 2014

03 de Agosto de 2014 - 06:00

Fim do Orkut, em setembro, provoca saudades de um tempo que não volta mais

Por JÚLIO BLACK
Não fui eu, foi meu Eu lírico. Anão vestido de palhaço mata oito. Cabras não têm ambições. Quando morrer quero ser cromado. Odeio acordar cedo. Lênin, de três. Perna Mecânica (Roberto Carlos). Lindomar, o SubZero Brasileiro. Nelson Piquet curte Metal. Eu nunca terminei uma borracha. Nunca vi supernanny na favela. Era Jesus um X-Man? Poucas vezes a criatividade - e a falta de noção - do brasileiro foi colocada à prova como nos bons tempos do Orkut, aquela que foi a primeira e a principal rede social de muitos durante um bom par de anos e que teve a sua "morte" anunciada pela Google para o próximo dia 30 de setembro, após ceder território de forma inapelável para o Facebook.
Além de perder a liderança do ranking das redes sociais para a criação de Mark Zuckerberg no final de 2011, atualmente ela tem menos de 1% da audiência no país. Isso não impede que muitos lamentem o seu fim e lembrem dos bons momentos vividos no Orkut. Além das comunidades, o espaço ficou famoso pelos scraps e depoimentos impagáveis, que geravam outras comunidades, piadas e sites dedicados ao nonsense involuntário dos usuários. Sem contar, é claro, os que buscam reviver os bons tempos em outras praias.
No meio de tanta coisa séria discutida nos fóruns, havia os depoimentos de alcova ("Não aceita o depoimento, por favor") com gente comentando suas peripécias sexuais, as fotos no vaso sanitário, no "cativeiro" (casas caindo aos pedaços), montagens constrangedoras no Photoshop, postagens infelizes nas comunidades com promessas vexaminosas... Até o seu ocaso, decadência e queda, o Orkut ofereceu diversão e o sentimento de vergonha alheia a dezenas de milhões de brasileiros.
 

Comparações com Facebook

Com saudades ou não da época, todo mundo sempre tem algo para contar daquela ferramenta que a grande maioria não sabia bem para que servia, mas que passou a fazer parte do dia a dia. Alguns, inclusive, mantêm suas contas até hoje. O personal trainer Matheus Marangon, 26 anos, entrou para o Orkut em 2006 e participa atualmente de duas comunidades: "Futebol (não) alternativo" e "Futebol alternativo off topics". "O Orkut é a melhor rede social para se discutir qualquer coisa. O formato de fóruns propicia isso, diferentemente de qualquer rede que faça sucesso hoje em dia", disse ele, para quem o Facebook poderia copiar o sistema de fóruns da moribunda criação do programador Orkut Büyükkökten. "O Facebook é péssimo para se discutir qualquer coisa, é meio 'bagunçado'".
Outro "sobrevivente orkutiano" é o servidor público Rafael Lignani, de 29 anos. Ele diminuiu drasticamente o uso da rede social a partir de 2010, com a migração massiva para o rival criado por Zuckerberg, mas sempre manteve a esperança de que o Orkut voltasse aos tempos em que participava ativamente das comunidades. "Tinha a esperança de que as pessoas percebessem o quão 'chato' era o Facebook se comparado ao Orkut. Sempre achei incrível a forma como você podia estudar a personalidade das pessoas por meio de suas comunidades. Em muitos casos, podia-se ter uma ideia bastante precisa dos gostos, do modo de vida e das crenças delas. O Facebook tornou essa 'análise' um pouco mais difícil. Além do mais, as comunidades proporcionavam espaço para debates e discussões - algumas acaloradas - sobre temas diversos. Isso acabou se dissipando no Facebook", acredita.
Apesar de não se ver como saudosista, o servidor público federal Eduardo Freitas, de 32 anos, compartilha da mesma opinião sobre a validade dos debates que as comunidades do Orkut permitiam. Ele - que não eliminou sua conta mas não a utiliza desde 2009 - vê a mudança de reinado ocorrida anos atrás com naturalidade. "As redes sociais se tornam obsoletas em pouco tempo, ainda mais quando outras ferramentas entram como 'substitutas'". Para ele, inclusive, as diferenças entre as duas redes seriam poucas. "Acredito que tudo se adapta a tendências e possibilidades. Hoje em dia, a chance de se 'viralizar' um 'meme' ou um vídeo é muito maior que na época de ouro do Orkut. O Facebook se mostrou mais amplo mundialmente."
A crônica da morte anunciada, porém, é quase uma nota de rodapé virtual para outros. A fotógrafa Amanda Dias, de 24 anos, cometeu o chamado "orkuticídio", há cinco anos, por total perda de interesse na ferramenta. "Achei natural, na verdade (o anúncio do fim do Orkut). É assim mesmo que funciona, mas pensei que eles manteriam a rede por mais tempo, mesmo abandonada", opinou a fotógrafa, que na época chegou a criar várias comunidades, que iam das suas bandas preferidas às totalmente nonsense, passando por personagens de histórias em quadrinhos. 
  

Tristeza não tem fim; zoeira, sim

 O tempo passa, e a memória virtual é miseravelmente curta, mas isso não impede que algumas comunidades célebres pelo espírito irreverente continuem no coração dos antigos usuários do Orkut. Uma das preferidas de Eduardo Freitas é a "Lênin, de três", uma hipotética partida de basquete entre bolcheviques e mencheviques. "Post por post, a narrativa se completava de uma maneira absurdamente lógica dentro dessa loucura", relembra. Matheus tinha entre suas preferidas a "Anão vestido de palhaço mata oito", com as notícias mais absurdas que possam existir, ainda que verídicas, e "PGM - Profiles de Gente Morta", em que eram colocados links de usuários do Orkut que já haviam morrido.

Já Rafael Lignani lembra de "Amo hipérboles. Mais que tudo" e "Eu odeio quem dança batendo palminha". A lista, porém, é interminável: mesmo com poucos integrantes, "Perna Mecânica (Roberto Carlos)" se definia como a comunidade "para aqueles que sabem a verdade". Nos fóruns, inúmeras discussões a respeito da perna mecânica do "rei" e da convivência dos dois no dia a dia. "Odeio acordar cedo", por outro lado, representava a inocência de quem não imaginava que poderia ficar com o "filme queimado" no trabalho ou na hora de procurar emprego - afinal, algumas empresas já fuçavam os perfis virtuais de empregados e candidatos. 

Saudosistas no 'Orkut russo'

 Há aqueles que querem ser a exceção à regra. Já que o Orkut é cabra marcado para morrer, algumas "viúvas orkutianas" começaram a migrar para a rede social russa VKontakte (ou VK). Até o final de julho, cerca de 350 mil brasileiros já haviam migrado para o "Orkut russo", onde é possível participar de comunidades parecidas com as que faziam sucesso anos atrás. Com um visual mais "limpo" e organizado, o VK acaba sendo um avanço em relação ao Orkut. Para emplacar, é preciso apenas que mais compatriotas marquem presença por lá: ainda é difícil encontrar amigos no site dos "camaradas".
Ainda que o Orkut passe a figurar, em breve, no Museu de Grandes Novidades da Web, há muito mais que memórias no seu legado: assim como já ocorria com o mIRC e o famoso bate-papo do UOL, foi por meio da seara virtual que muitas distâncias foram encurtadas e amizades reais foram forjadas. "Basicamente acabei conhecendo todo mundo que se tornou meu amigo por lá. Os grupos sempre promoviam encontros, conheci muita gente de fã-clubes de 'Star trek', colecionadores, escritores. Tudo isso influenciou até no meu trabalho. Quem não está no meu Facebook eu tenho o e-mail, telefone, e vejo sempre que é possível", observa Thamiris Carvalho, produtora de eventos como o "Towel con" de Juiz de Fora. 

Rede vista com outros olhos

A "primeira das redes sociais" não deve ser vista apenas como o lugar onde nada era levado a sério. No mundo acadêmico, ela se tornou objeto de estudo tanto como fenômeno social quanto em áreas como a comunicação e cibercultura. Para a pesquisadora do Laboratório de Pesquisas em Tecnologias de Comunicação, Cultura e Subjetividade da Uerj, Letícia Perani, o Orkut foi de grande importância para introduzir as redes sociais no Brasil e difundir o uso mais geral da internet no país. "A chamada inclusão digital brasileira deve muito a essa rede. Nos estudos de comunicação e cibercultura, o Orkut foi um objeto de estudo fundamental para explicar as novas formas de sociabilidade e construção do conhecimento que temos hoje com as ferramentas web", opinou.
Ela, entretanto, não concorda que a derrocada da rede tenha a ver com a "novidade" do Facebook, visto que os dois nasceram no mesmo ano. "O Orkut é um bom exemplo da transição da chamada Web 1.0 (usuário de internet apenas como 'consumidor' de conteúdos) para a Web 2.0 (usuário como consumidor e produtor de conteúdos). O Facebook parece ter se mostrado uma ferramenta mais de acordo com as necessidades do usuário da Web 2.0: compartilhando conteúdos na linha do tempo, o Facebook se torna uma fonte de informação (seja pessoal ou de interesse público), e essa troca de conteúdos acontece de forma mais rápida e orgânica."
"Além disso, outro fator que acredito ter sido importante para o 'abandono' do Orkut foi a adoção em larga escala dos smartphones e dispositivos móveis em geral. O Facebook soube se adaptar melhor, mas só isso não é suficiente para explicar. As dinâmicas de uso das redes sociais são muito complexas, há vários fatores que precisam ser pesquisados para uma opinião embasada", acredita Letícia, acrescentando que até mesmo o MSN acabou sucumbindo devido à facilidade de trocas instantâneas de mensagens proporcionada pelo Facebook. Para ela, o WhatsApp pode se tornar um concorrente dentro deste nicho, por ser uma rede mais privada que também permite o compartilhamento fácil de mensagens e conteúdos multimídia.
 

Como será o amanhã

O consultor de redes sociais Renan Caixeiro acredita que, mesmo com o clima de "terra arrasada" do Orkut, o anúncio de seu fim foi surpreendente. "Nunca vimos um anúncio desse peso. Mesmo sem o suporte da Google, era usado por algumas pessoas. E a gente vê serviços de e-mail ativos há quase 20 anos, como o do Bol. Esse fim é uma coisa nova para se pensar, pois você coloca fotos e informações na internet e pode perder isso", alerta.
Renan destaca que o Orkut foi a primeira rede social de massa, por reunir usuários de vários locais em um só. "Foi importante como modelo de transição do que havia antes, reunindo e-mail, Fotolog, MSN, bate-papo, mIRC, fóruns. O Orkut colocava tudo isso em uma ferramenta só, ninguém tinha feito isso antes de forma competente."
E o amanhã, como será? "Em um ou dois anos, pode aparecer um cenário completamente diferente, como ocorreu anos atrás devido ao surgimento do iPad e do iPhone. O Facebook só conseguiu sobreviver justamente por ter conseguido lidar com a questão da mobilidade, assim como o Twitter soube se reinventar para não ter o mesmo fim do Orkut", finaliza Renan.

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