RIO — Em 2013, os estados americanos do Colorado e Washington aprovaram a regulação da maconha para fins recreativos. Mas foi o Uruguai, que em uma decisão inédita tornou-se o primeiro país a legalizar o cultivo, a venda e o consumo da cannabis, o grande responsável por trazer o tema a debate em quase todas as partes do mundo. A droga, que é usada para fins recreativos, medicinais e até em rituais espirituais desde 3.000 a.C., ainda causa polêmica e é legal em outros 20 estados dos EUA, para fins terapêuticos. Em países europeus como Portugal, Espanha e Holanda, e alguns latino-americanos, como Colômbia e México, o consumo e o porte para uso pessoal são descriminalizados, isto é, não são considerados crimes. O que não quer dizer que o consumo seja legalizado.
- Somente no Uruguai e nos dois estados americanos, assim como nos coffee shops da Holanda e nos clubes cannabis da Espanha, o consumo é legal de fato. Em cerca de 20 outros países no mundo o consumo é descriminalizado, isto é, os consumidores não são punidos pela justiça criminal, mas a droga não é legal - explica a cientista política Ilona Szabó.
Para ela, a regulamentação do mercado é um pontapé para a discussão sobre o tema na América Latina.
- Creio que a coragem do líder uruguaio abrirá portas para experimentos em outros países da região, e a seriedade de cada governo e o comprometimento com o monitoramento e avaliação constante da política será determinante para que os resultados esperados sejam atingidos. Sem dúvidas devemos olhar os resultados desta política de perto, e avaliar a possível adaptação do que der certo a outras realidades próximas, incluindo a nossa - ressalta a cientista política, que lembra que a discussão já acontece em muitos países da América do Sul como o México, Guatemala, Equador, Argentina e Colômbia. - O Brasil, no entanto, está bastante atrasado neste debate. Já está mais que na hora do país dar este passo.
A cientista política - que é diretora-executiva do
Instituto Igarapé - não acredita que a aprovação da medida e sua implantação, a partir do ano que vem, aumente o fluxo de turistas para o país. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que cerca de 4% da população mundial usam cannabis pelo menos uma vez ao ano e cerca de 0,6% (22,5 milhões) a consomem diariamente.
- Hoje muitos líderes políticos já perceberam que se não enfrentarem a questão da reforma das políticas de drogas, continuarão enxugando gelo no combate à criminalidade em seus países. No momento, o grande paradoxo é que a proibição, na verdade, é muito mais permissiva do que a regulação. Quem quiser comprar drogas, o faz sem nenhuma regra, restrição de idade ou controle de qualidade, literalmente em todas as cidades do planeta. Desta forma, não é provável que as pessoas se desloquem até o Uruguai para comprar maconha. Até mesmo porque o governo terá um cadastro dos usuários e somente essas pessoas, cidadãos uruguaios, poderão comprar maconha legalmente.
O modelo uruguaio ainda não foi testado, mas já recebeu criticas e elogios representativos e até inesperados. A revista americana “Economist” defendeu recentemente que a nova legislação permite às autoridades se “concentrarem em crimes mais graves, o que nenhum outro país fez”, tecendo elogios ao presidente uruguaio José “Pepe” Mujica. Já as Nações Unidas afirmaram, logo após a aprovação, que a nova legislação violaria convenções internacionais. Segundo o comunicado da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes (INCB na sigla em inglês), o Uruguai estaria “quebrando convenções internacionais sobre o controle de drogas”. Seu presidente, Raymond Yans, afirmou estar surpreso por Montevidéu ter “conscientemente decidido romper as provisões legais universalmente acordadas e endossadas do tratado”. André Barros, mestre em Ciência Penal e o advogado da Marcha da Maconha rebate às críticas.
- A ONU se prende a uma convenção de 1961, um modelo antigo de guerra às drogas - explica.
Pioneirismo holandês
A Holanda, país pioneiro na legalização do uso recreativo, inclusive para turistas, decidiu não quebrar a convenção. Mas resolveu acabar com o vínculo entre usuários e traficantes. O fenômeno dos Coffee Shops surgiu na década de 70, quando líderes políticos, assustados com o fenômeno da heroína e também frustrados diante o fracasso da guerra às drogas, decidiram encontrar modos de reduzir o impacto da criminalização nos jovens e na sociedade. No modelo holandês, a venda de maconha em pequenas quantidades pelos coffee shops é tolerada, mas os donos dos estabelecimentos continuam comprando a maconha de fontes que a produzem de forma ilegal.
- Cabe destacar que a política de descriminalização do consumo de drogas leves não produziu um aumento no consumo na Holanda, quando comparado com outros países que adotaram políticas proibicionistas. Atualmente, a Holanda tem o menor percentual de pessoas que se injetam com heroína em toda a União Europeia e também o menor percentual de usuários problemáticos. A heroína perdeu seu atrativo para a maioria dos jovens e é vista como uma “droga que é um beco sem saída” - diz Ilona.
Nos EUA, a experiência inédita do Colorado e Washington incentivou o debate na maior parte dos legislativos estaduais. No primeiro semestre de 2013, só 18 dos 50 estados não apreciaram projetos de lei para liberação do acesso medicinal, do uso recreativo ou de descriminalização. Dos 18, seis já legalizaram a aplicação terapêutica da cannabis, deixando apenas 12 totalmente alienados do debate. Cada estado americano tem poder de aprovar suas próprias medidas em relação ao tema, embora a lei federal considere crimes o uso e o porte da maconha.
- Nos EUA a maconha foi legalizada através de plebiscitos, ou seja, na maioria das vezes, a população votou sobre o tema diretamente. Mas, apesar da legalização total em Washington e no Colorado, é o país quem lidera a política de criminalização da maconha no mundo inteiro. O governo americano precisa mudar sua postura em relação à criminalização, já que é o que mais planta e tem a medicina mais avançada do mundo, inclusive para o tratamento do câncer e da Aids - destaca Barros