Na Trilha da Inclusão Ainda que você consiga dormir tranquilo com a ideia de que tem o destino garranchado pela genética, é provável que acorde num mundo esquisito: o nosso sistema de leis depende de alguma noção de livre-arbítrio. Não atribuímos responsabilidade moral a crianças, recém-chegadas nesta vida de "certos" e "errados", nem a vítimas de transtornos mentais, por exemplo. Num caso clássico da literatura jurídica, o americano Donta Page, que confessou ter estuprado e matado a facadas uma jovem em 1999, escapou da pena de morte e foi sentenciado à prisão perpétua. A defesa alegou que espancamentos durante a infância haviam danificado o cérebro de Page. Ele não tinhaescolha senão ser violento. Acontece que, se Harris, Greene e Cohen estiverem certos, acordamos num mundo em que o poder de escolha é uma ilusão. Como julgar quem é um refém mecânico do próprio cérebro?
Segundo o professor da Faculdade de Direito da UFRGS, criminologista e desembargador aposentado Odone Sanguiné, o futuro que a neurociência acena para a Justiça Criminal é de reformas inclusivas, que levem em conta o princípio da dignidade humana.
- O diálogo com os conhecimentos das neurociências está provocando uma revisão das categorias dogmáticas do Direito Penal, bem como uma rediscussão sobre a legitimação das penas e medidas de segurança - afirma.
Em vez de desembocar em polícias da biologia e prisões abarrotadas de condenados pelo crime de nascer com um córtex indesejado, uma melhor compreensão da estrutura cerebral pode, ao contrário, facilitar a reintegração social.
- A ressocialização de apenados não depende exclusivamente do encarceramento, pois a prisão é criminógena e dessocializadora. A inclusão e o retorno de egressos à sociedade sem reincidência depende mais da manutenção de vínculos familiares, de políticas públicas de serviços assistenciais pós-penitenciários e da participação de ONGs - diz.
Além disso, não é somente a neurociência a reformar o Direito. Segundo Sanguiné, essa via tem duas mãos.
- A interação interdisciplinar é produtiva, cabendo destacar que inclusive alguns neurocientistas alemães mitigaram suas posições iniciais, formulando hipóteses em colaboração com penalistas e filósofos - destaca.
Não Tem Bola de Cristal Kent Kiehl já atuou como consultor em mais de cem casos criminais nos Estados Unidos.Em entrevista por e-mail, ele e o colega de pesquisa Eyal Aharoni sustentaram que o mapeamento da atividade cerebral, "como todo outro resultado científico, deve apenas ser usado como evidência em tribunais se preencherem padrões estabelecidos de validade e admissibilidade".
"Nenhuma medida isolada pode ou deve ser usada para tomar decisões sobre o bem-estar de alguém", afirmam, emendando que a descoberta neurobiológica de que alguém tem chances de repetir um crime não significa que essa pessoa esteja fadada a exibir essa conduta.
"Como em toda pesquisa científica, nosso conhecimento sobre a relação entre funções cerebrais e comportamento antissocial é apenas probabilístico. O grau de precisão dessas previsões deve ser cuidadosamente examinado antes que possa ser aplicado a transgressores individuais", alertam.
Kiehl e Aharoni não são vozes solitárias entre os neurocientistas. Mesmo Adrian Raine, que levanta a bola da "neurocriminologia", reconhece que "biologia não é destino". Para o neurologista e diretor do Instituto do Cérebro da PUCRS, Jaderson Costa da Costa, ações simples, como mover um dedo, até podem estar sujeitas a previsão, mas "o cérebro é extremamente plástico, adaptável" e "sempre lhe restará muito de imprevisibilidade". Assim, seria perigoso incentivar uma política de intervenção médica para impedir a ocorrência de crimes.
– A mesma tecnologia poderia ser utilizada inadequadamente para controle do comportamento humano. No momento, há uma enorme distância entre o "conhecer" e o "intervir".
A preocupação do Dr. Jaderson encontra expressão no livro mais conhecido de Anthony Burgess, Laranja Mecânica, sátira distópica em que cientistas reprogramam o cérebro de um criminoso para torná-lo incapaz de qualquer ato violento. Uma laranja mecânica, explica Burgess, é uma entidade orgânica, cheia de suco e doçura e perfume, transformada em autômato. Ao arquitetar o autômato paz-e-amor, joga-se o bebê fora junto com a água do banho: ralo abaixo vai o crime, mas também o livre-arbítrio.
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